A ordem do dia era sempre a mesma: conversar com os enlutados, escolher as passagens preferidas, ver o corpo morto no caixão e descobrir algumas coisas interessantes para usar em seu ótimo improviso acolhedor. Padre Cláudio sentia que era um amigo da morte. Quem o ouvia achava que ele era amigo do morto.
Chegou exatamente 6h14 da manhã como sempre. Esses 14 minutos de atraso eram o percurso que fazia a pé de seu apartamento até o cemitério. Morava lá perto mesmo, desde que descobriu seu dom em celebrar rituais fúnebres. Aos 58 anos, Padre Cláudio ainda gostava de chegar atrasado para ser recebido pelas funcionárias que trabalhavam lá, com o carinho que não recebia em mais nenhum outro lugar.
Rosana sempre o cumprimentava com um abraço e o avisava em quais salas o padre entraria, porque a família não tinha um padre de preferência, e quais salas não teriam padre nenhum. Padre Cláudio não entendia como deixavam um morto passar para o outro lado, sem uma palavra final de alguém que tinha uma conexão direta com o divino, como ele tinha. Sobre essas salas, ele nem fazia questão de passar perto, por mais que dizia ter respeito.
RICARDO ANDREAS MARTINS, esse era o nome do morto da manhã. O corpo já estava lá. O padre esperou a viúva se aproximar para entender o que poderia falar sobre o homem. Enquanto a mulher falava, Padre Cláudio buscava prestar atenção, mas só ficava com o nome do morto na cabeça: RICARDO ANDREAS MARTINS. Besteira dele pensar no que estava pensando.
Um homem querido pela família, amado pelos filhos, sempre teve uma vida serena, viajou bastante, trabalhou bastante. Era fácil falar sobre ele. Algo genérico sobre morte e vida iria servir. A primeira passagem que sugeriu foi aceita. Eclesiastes, capítulo 3. Nada extraordinário para a morte da manhã. Os enlutados chegavam, o padre conversava e ouvia atento ao que diziam. Ouviu sobre a empresa que Ricardo trabalhou a vida inteira, as viagens inesquecíveis para o interior de São Paulo e o amor que tinha pelas suas motocicletas. Em meio a risadas e choros, tudo tornava-se material para Padre Cláudio. Estava pronto para a sua palavra, amava a arte do improviso desde pequeno.
Entrou na sala e preparou seu material. Até que se deu conta do morto. RICARDO ANDREAS MARTINS. Não podia ser. Era ele mesmo. Quando Ricardo foi expulso da escola, tinha entendido que se mudara para o interior. Nunca pensou em 50 anos que Ricardo tinha voltado para São Paulo.
Apagou instantaneamente tudo o que ouvira sobre o morto. O Ricardo que Cláudio conhecia não era um homem querido e amado. Era um crápula. Aos 8 anos de idade, Ricardo foi mandado embora do internato, porque chutou Cláudio do parapeito da escola, depois de o atormentar por um ano inteiro por conta de um incidente com uma goma de mascar. Foram cinco meses usando gesso no braço. Oito meses apanhando do seu pai por ter sido fraco demais para enfrentar um inimigo. Um ano inteiro sendo chamado de "bunda suja" por todos os seus colegas. Cláudio odiava Ricardo.
Esqueceu de seus votos como padre. Cláudio não era um "bunda suja". Olhou para aquele morto como se pudesse matá-lo novamente. Olhou em volta os enlutados com uma vontade imensa de dar risada. Aquelas sensações eram novas. Talvez não fosse feito para ser padre mesmo. Agora que deveria exercer o perdão, tudo o que Cláudio queria era dizer para a viúva que ela foi casada com um péssimo homem, que acabou com a sua infância. Nem Lucas, capítulo 6, ajudaria o padre naquele momento.
Ele não se conteve. Em um gesto rápido e sem nenhuma bondade, empurrou o caixão, que caiu com um estrondo no chão. Precisava sentir a mesma sensação que Ricardo teve ao chutá-lo do parapeito do colégio. A gritaria foi enorme. O corpo duro, revirado em meio às margaridas e crisântemos. O espanto de Rosana, que sempre o recebia todas as manhãs. Padre Cláudio tinha um sorriso de orelha a orelha. Sentia como se tivesse tirado um peso enorme de seus ombros. A família chorava aos berros. Os seguranças se aproximavam para levantar o caixão.
Ele nem sentiu o peso do corpo. Naquele momento, Ricardo e o padre tinham 8 anos novamente, mas quem foi empurrado, finalmente, não foi Cláudio. Sua vingança tinha sido realizada, nunca se sentiu tão amigo da morte como agora. Nunca tinha sido tão inimigo de um morto. Depois da confusão, Padre Cláudio conseguiu usar a queda do morto ao seu favor. Fez um lindo discurso sobre a vida, a morte e as quedas no caminho. Todos choraram e se emocionaram. Foi perguntado como conhecia Ricardo tão bem pelas lindas palavras, no que o padre respondeu: "sou amigo da morte, minha querida, ela me diz o que tenho que fazer".
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