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- BUNKER
Já havia se passado 72h como tinha sido noticiado na preparação para o fim do mundo. O mundo acabaria conforme planejado: desastres causados por nós mesmos. Pelo menos sabíamos a hora e o dia que era preciso entrar no bunker. As previsões indicavam que os sobreviventes poderiam sair três dias depois e esse momento tinha chegado. Tudo até então tinha sido conforme o plano de emergência mundial: 1. preparamos durante seis meses nosso bunker com ajuda do governo; 2. compramos e trocamos os itens de sobrevivência para os três dias (alguns mais abastados e desesperados se prepararam para anos); 3. entramos no bunker; 4. perdemos o sinal com os outros bunkers; 5. acabou a energia; 6. aguardamos três dias e agora estávamos no último item; 7. sair depois de 72 horas. A questão é que por mais que fossem feitas previsões, estimativas, estudos e preparações, ninguém sabia o que iria acontecer quando saíssemos. O mundo poderia estar pegando fogo ou completamente inundado, o ar podia estar tóxico ou há também quem acreditava que nada teria acontecido. Foi ingênuo ter me preparado apenas para três dias, como o governo disse que seria o mais importante. Talvez se fizesse como alguns que se prepararam para um ano, não estaria tão ansioso. O bunker ficou espaçoso. Não tinha tanta coisa, já que só seriam três dias, mas sair agora era um pouco assustador. Foram três dias de completo silêncio, escuridão e introspecção. Com certeza todos tivemos tempo para pensar em centenas de futuros possíveis para o momento. Será que sabíamos abrir aquela porta pesada? Apenas aprendemos a fechá-la nos manuais de preparação. Foi dito que durante os dias escutaríamos barulhos na porta, gritos de pessoas que eram contra a ideia do fim do mundo tentando entrar. Foi aconselhado não encostar na porta por conta da temperatura dela e que alguns bunkers mal localizados provavelmente poderiam ser inundados. Aqui não caiu nenhuma gota do teto. Não ficou quente, nem frio demais. 72 horas não são nada quando se tem o que fazer. O contrário disso é insuportável. Deveria ter seguido o instinto dos desesperados e colocado uma biblioteca inteira no bunker, luzes de emergência que duram meses, papel higiênico para toda a vida. "Só 72 horas. E depois voltamos ao normal", pensavam os céticos, como eu. Será que era tudo mentira? Estava tão preparado para o pior, que como nada aconteceu, não sabia o que pensar mais. Talvez se abrisse só uma frestinha… Só uma espiada para ver como estava minha rua. Escolhi colocar meu bunker aqui, porque sabia que poucas pessoas fariam o mesmo. Os mais ricos colocaram os bunker em locais altos, montanhas nos Alpes com bunkers familiares. O padrão era ir para locais descampados, afastados da civilização, já que os pobres foram amontoados no centro da cidade. O meu bunker está localizado embaixo de um teatro abandonado, pertinho de onde moro. Eram só três dias. Será que aguento mais quatro dias aqui? Pelo menos completaria uma semana. Outras pessoas já devem sair e dar uma olhada para entender como está o mundo. Não quero ser especial ou ficar em primeiro lugar, deixo isso para eles. O corpo aguenta quatro dias sem água. Talvez teste o limite dele. Faço um pacto comigo mesmo, só saio daqui se alguém bater na porta ou se me irritar demais com a escuridão, com a fome e sede. O cheiro já não me incomoda mais. O tédio que me incomoda. O tédio e a ansiedade que veio junto dela. Consigo me guiar no tempo pelo buraco de luz que liga meu bunker com a terra. Não ter luz também me fez dormir mais, talvez tenha passado umas 40 horas dessas 72 dormindo ou tentando dormir. Não estou pronto para sair daqui e enfrentar o desconhecido. Seja ele qual for, não quero me entregar ao processo, ao caminho e à aventura. Talvez fosse mais fácil escutar os barulhos e gritos de ajuda, me amontoar no centro com outras pessoas ou ficar perto de um primo rico. Estar sozinho e não acontecer nada parece a pior das consequências do fim do mundo. Queria que tivesse sido como os filmes. Fico aguardando respostas ou que alguém me mande um sinal.
- FUGA
Escapou da corda que a segurava e saiu correndo sem rumo. Eram muitos estímulos, sons e cores. A sensação era como se tivesse vivido dentro de uma espaçonave por anos e agora estava colocando o pé para fora em um planeta desconhecido. Não tinha noção de tempo, apenas uma noção biológica do que precisava fazer. Depois de tanto tempo presa, aquele momento, agora, era de explorar. Correu até acabar o ar e descansou na sombra de uma árvore. Decidiu que se ia viver assim, com tanta liberdade, que deveria fazer as necessidades ali mesmo e assim o fez. Era como se estivesse marcando um território para mostrar ao mundo que esteve ali. Finalmente alcançou a autonomia. Continuou sua jornada. Passou por prédios, pessoas, cachorros e pássaros. Sentiu cheiros maravilhosos, nostálgicos e fortes. Azul, amarelo e roxo. Estava vendo o mundo pela primeira vez, por isso tinha uma certa ingenuidade no seu olhar. Só conhecia um pequeno mundo em que não tinha sido maltratada, por mais que estivesse em cativeiro. Se aproximou de um cachorro errado e assim começou a desventura. Tomou uma mordida, que a fez correr com uma dor imensa. Foi xingada por um homem que a confundiu com outra. Teve que se esconder em um canto escuro e sujo, ser vizinha de ratos. Começou a sentir fome e falta de afeto. Não tinha dinheiro e nem ideia de como conseguir. Perambulou pela noite. Por mais que estivesse aliviada com o volume mais baixo dos ambientes, algo a dizia que o perigo estava à espreita. Foi depois de andar por 10km, com dor e fome, que avistou uma luz forte debaixo de uma ponte. Se aproximou aos poucos, com receio do que encontraria e lá estava uma outra mulher, mais velha, magra, com cabelos bagunçados, se esquentando em uma fogueira, ao lado de uma barraca. – Oi, querida, quer sentar aqui? Ela não tinha respostas. O dia tinha sido longo e uma constante quebra de expectativa. – Está assustada, né? Fique tranquila. Pode sentar aqui, vou te servir uma comida e você pode dormir com a gente hoje. Ao abrir sua barraca, ela viu três outras que nem ela. Calmas, felizes e tranquilas. A mulher lhe serviu um pouco de comida, as outras três saíram e fizeram festa para a chegada da nova amiga. – Você não fala, né? Vou te chamar de Quieta. Essas são a Gabi, Sandrinha e Russa. Elas falam bastante. Nem tudo estava perdido agora, tinha encontrado um novo lar. Um novo nome. Novas amigas parecidas com ela. A comida era tão boa quanto a que comeu a vida toda. A barraca era aconchegante e a companhia agradável. Dormiu bem. Acordou bem. Foram três dias assim, ela, a mulher velha e as outras três. Esqueceu totalmente da vida anterior, só lembrava da vida atual em que tinha tudo o que precisava. Até um dia em que acordou com novos barulhos e o som da mulher chamando todas, que ainda dormiam na barraca. – Bora meninas, vamos que não podemos ficar aqui, se não vai sobrar pra mim. Corre! Ficou confusa com a saída repentina. Seguiu as outras, correu como se estivesse correndo quando se libertou. Mas não seria essa a sua nova vida? Já tinha se adaptado. Estava feliz. Não entendeu que liberdade era aquela para precisar correr de novo. Durante o novo caminho, ouviu a mulher chorar. Se comoveu com a tristeza dela, mas não sabia como se expressar. A mulher dizer que não sabia para onde ir agora que levaram tudo que ela tinha. As outras meninas sabiam o que dizer. Já ela não. – Belinha? Olhou para frente. Ignorou o choro da velha. Aquele cheiro ela reconhecia. E gostava. – Belinha? É a Belinha! Moça, essa cachorra é minha! A mulher velha argumentou que ela tinha aparecido em uma madrugada e adotou a cachorra, mas que não era dela. Estava chamando ela de Quieta, porque ela não latia e era bem calma. Aos prantos, Renata encontrou sua cachorrinha Belinha, uma mistura de Shih Tzu com viralata. – Eu pago tudo o que você quiser, por favor, devolva minha Belinha! A mulher velha cobrou qualquer valor que ajudasse ela a encontrar um lugar para passar as próximas noites com suas cadelas Gabi, Sandrinha e Russa. Saiu feliz e agradeceu a Belinha. Ela voltou para casa, depois de ter explorado o mundo. Quando chegou, explorou todos os cantos como se fosse a primeira vez de novo. O cheiro tinha mudado. Deviam ter lavado sua cama. Deitou para dormir e acordou presa numa corda do lado de fora da casa, sem companhia, sonhando com um dia em explorar aqueles estímulos, sons e cores, que passavam pelo portão.
- QUEDA
A ordem do dia era sempre a mesma: conversar com os enlutados, escolher as passagens preferidas, ver o corpo morto no caixão e descobrir algumas coisas interessantes para usar em seu ótimo improviso acolhedor. Padre Cláudio sentia que era um amigo da morte. Quem o ouvia achava que ele era amigo do morto. Chegou exatamente 6h14 da manhã como sempre. Esses 14 minutos de atraso eram o percurso que fazia a pé de seu apartamento até o cemitério. Morava lá perto mesmo, desde que descobriu seu dom em celebrar rituais fúnebres. Aos 58 anos, Padre Cláudio ainda gostava de chegar atrasado para ser recebido pelas funcionárias que trabalhavam lá, com o carinho que não recebia em mais nenhum outro lugar. Rosana sempre o cumprimentava com um abraço e o avisava em quais salas o padre entraria, porque a família não tinha um padre de preferência, e quais salas não teriam padre nenhum. Padre Cláudio não entendia como deixavam um morto passar para o outro lado, sem uma palavra final de alguém que tinha uma conexão direta com o divino, como ele tinha. Sobre essas salas, ele nem fazia questão de passar perto, por mais que dizia ter respeito. RICARDO ANDREAS MARTINS, esse era o nome do morto da manhã. O corpo já estava lá. O padre esperou a viúva se aproximar para entender o que poderia falar sobre o homem. Enquanto a mulher falava, Padre Cláudio buscava prestar atenção, mas só ficava com o nome do morto na cabeça: RICARDO ANDREAS MARTINS. Besteira dele pensar no que estava pensando. Um homem querido pela família, amado pelos filhos, sempre teve uma vida serena, viajou bastante, trabalhou bastante. Era fácil falar sobre ele. Algo genérico sobre morte e vida iria servir. A primeira passagem que sugeriu foi aceita. Eclesiastes, capítulo 3. Nada extraordinário para a morte da manhã. Os enlutados chegavam, o padre conversava e ouvia atento ao que diziam. Ouviu sobre a empresa que Ricardo trabalhou a vida inteira, as viagens inesquecíveis para o interior de São Paulo e o amor que tinha pelas suas motocicletas. Em meio a risadas e choros, tudo tornava-se material para Padre Cláudio. Estava pronto para a sua palavra, amava a arte do improviso desde pequeno. Entrou na sala e preparou seu material. Até que se deu conta do morto. RICARDO ANDREAS MARTINS. Não podia ser. Era ele mesmo. Quando Ricardo foi expulso da escola, tinha entendido que se mudara para o interior. Nunca pensou em 50 anos que Ricardo tinha voltado para São Paulo. Apagou instantaneamente tudo o que ouvira sobre o morto. O Ricardo que Cláudio conhecia não era um homem querido e amado. Era um crápula. Aos 8 anos de idade, Ricardo foi mandado embora do internato, porque chutou Cláudio do parapeito da escola, depois de o atormentar por um ano inteiro por conta de um incidente com uma goma de mascar. Foram cinco meses usando gesso no braço. Oito meses apanhando do seu pai por ter sido fraco demais para enfrentar um inimigo. Um ano inteiro sendo chamado de "bunda suja" por todos os seus colegas. Cláudio odiava Ricardo. Esqueceu de seus votos como padre. Cláudio não era um "bunda suja". Olhou para aquele morto como se pudesse matá-lo novamente. Olhou em volta os enlutados com uma vontade imensa de dar risada. Aquelas sensações eram novas. Talvez não fosse feito para ser padre mesmo. Agora que deveria exercer o perdão, tudo o que Cláudio queria era dizer para a viúva que ela foi casada com um péssimo homem, que acabou com a sua infância. Nem Lucas, capítulo 6, ajudaria o padre naquele momento. Ele não se conteve. Em um gesto rápido e sem nenhuma bondade, empurrou o caixão, que caiu com um estrondo no chão. Precisava sentir a mesma sensação que Ricardo teve ao chutá-lo do parapeito do colégio. A gritaria foi enorme. O corpo duro, revirado em meio às margaridas e crisântemos. O espanto de Rosana, que sempre o recebia todas as manhãs. Padre Cláudio tinha um sorriso de orelha a orelha. Sentia como se tivesse tirado um peso enorme de seus ombros. A família chorava aos berros. Os seguranças se aproximavam para levantar o caixão. Ele nem sentiu o peso do corpo. Naquele momento, Ricardo e o padre tinham 8 anos novamente, mas quem foi empurrado, finalmente, não foi Cláudio. Sua vingança tinha sido realizada, nunca se sentiu tão amigo da morte como agora. Nunca tinha sido tão inimigo de um morto. Depois da confusão, Padre Cláudio conseguiu usar a queda do morto ao seu favor. Fez um lindo discurso sobre a vida, a morte e as quedas no caminho. Todos choraram e se emocionaram. Foi perguntado como conhecia Ricardo tão bem pelas lindas palavras, no que o padre respondeu: "sou amigo da morte, minha querida, ela me diz o que tenho que fazer".
- PABLO
Pablo resolveu que hoje ia sentar para escrever. Talvez fosse mais fácil se não tivesse uma obra do lado, um gato velho no colo, um pianista no andar de cima, uma ligação que mudaria seus planos de vida que podia acontecer a qualquer momento e uma ansiedade que batia forte no peito porque tinha terminado seu café e via a página em branco. Ele estava conformado que podia não sair nada no papel, mas hoje, ele resolveu que ia sentar para escrever. Talvez se ele escrevesse alguma metalinguagem sobre a falta de ter ideias como um primeiro texto o ajudasse, mas Pablo não sabia muito bem como traduzir em palavras as ideias que percorriam na sua cabeça. O nosso amigo Pablo não tinha esse hábito da escrita. Ele lia as coisas, achava elas interessantes e tinha uma vontade escondida em fazer a mesma coisa. Largou o emprego para escrever e sempre se imaginava escrevendo no campo, no barulho ou em qualquer situação, mas agora não sabia nem por onde começar… Será que ele sabe usar bem as palavras? Será que ele sabe escolher a pontuação certa para as frases! Pablo não fazia ideia de nada. Só decidiu que naquele dia e naquela hora ele ia escrever. – Escrever sobre o que? - perguntou sozinho. Nem ideia ele tinha. Até que tinha, mas as ideias estavam escondidas ainda, com medo de sair, porque ele não podia controlá-las. Pablo era um controlador-ansioso. – Preciso escolher o nome das personagens - começou a falar - Carla não, porque é o nome da minha ex-mulher, ela vai pensar que é para ela. Bonifácio não, porque é o nome do amigo do meu pai. Pode ser Pablo, que é o meu nome, mas não sei se vai parecer muito egóico da minha parte. Se bem que tem um traficante colombiano com esse nome. Melhor não abusar. Talvez invente um nome. Vou inventar um nome. Pablo nesse momento parou de escrever e ficou pesquisando por horas nomes que não existem. Pensou em chamar suas personagens com emojis e símbolos, mas concluiu que não sabia como funcionavam os direitos desse tipo de arte (ele também não sabia se emoji podia ser considerado arte). Pablo queria escrever uma história épica, daquelas com três protagonistas adolescentes que viraria uma franquia de filme e um novo universo. Ele sabia de todos os finais, só não tinha pensado no começo. Nosso colega Pablo então se distraiu olhando a tela em branco, parou por coisas externas, fez um desenho, desistiu de escrever quando leu o que já tinha escrito. Poxa Pablo, a gente pensou que dessa vez você ia até o fim. – Oi? … Pablo ficou confuso. Olhou para os lados e procurou uma voz. – Tem alguém aqui? Mariana, é você? Quem tá falando? … – Eu, hein? … MIAUUU – Já tô indo, gato folgado. Quer comida? Ninguém te ama. … … … TRIIIIMMM – Alô? Que susto. Oi Mari, eu pensei que você tinha chegado em casa, comecei a escutar umas coisas mais cedo… Não, eu sei que você chega só amanhã, Mariana. Eu tô aqui cuidando desse gato velho e você ai. Não, tá tudo certo, a gente tinha combinado, eu lembro. É que eu tô cheio de coisas para fazer, caramba. Você fica me ligando e isso atrapalha… Não tem que pedir desculpas! Não vem com essa agora pra cima de mim! Tá…. Tô… Ah, entrou algumas coisas de trabalho e eu terminei de escrever já aquelas ideias… Ah, mais ou menos, tô meio sem ideia. Tá bom. Tá bom pode ser! Beijo, tá. Eu também. … … … – Bosta… Ai… Calma… Droga… Ai. CRASHHH TUMMM MIAUUU … … … Pablo caiu no chão da cozinha e morreu. Talvez se tivesse me ignorado e não tivesse atendido a ligação estaria vivo, mas esse não era o nosso herói. Pablo queria escrever uma história trágica com reviravoltas, plot twists e personagens com várias camadas, mas teve seu fim em uma poça de café, entre cacos de uma xícara de brinde do escritório que trabalhava e um gato velho que não gostava, que ficou lambendo sua testa. No dia seguinte, sua esposa chegou em casa, pronta para o divórcio e com um certo alívio de ver aquele homem morto no chão.